terça-feira, 8 de julho de 2008

É a fragilidade que é fundadora


É a fragilidade que é fundadora

O sentido profundo
do ser humano

Jean Vanier
Fundador da “ARCA” Internacional


A eficácia a produtividade e o culto do sucesso pessoal alimentam a
angústia o desprezo do outro e o isolamento dos indivíduos.
Na ARCA retirada da sociedade de competição as pessoas que têm uma
deficiência ensinam-nos e revelam-nos um outro sentido do ser humano.


Na nossa sociedade de competição só
alguns conseguem ganhar e muitos
perdem. Se não consigo ganhar entro
em angústia. E a cultura de competição
está de tal maneira omnipresente que
o meu desejo de ganhar continua a ser
o mais forte... Deste ponto de vista
considero a análise de Jacques
Généreux 1 excelente.
Os que não conseguem ser bem
sucedidos entram em angústia e em
depressão e a depressão conduz à
violência. É o que se passa nos
subúrbios das grandes cidades onde a
violência de grupos de jovens é o
produto das suas angústias. Os pais não
têm trabalho as condições habitacionais
não são boas, os jovens abatidos
encontram-se em grupos e passam do
abatimento à violência. O paradoxo é
que mesmo se somos contra a
competição temos que encorajar os
jovens a procurar um trabalho e a
estudar; temos que ajudar as pessoas a
integrarem-se nesta cultura de
competição para que não fiquem
demasiado angustiadas e por consequência
violentas; para que consigam
encontrar um equilíbrio nas suas
vidas…

Vivemos num mundo paradoxal. O que
fazer então?

A ARCA um lugar de amizade

É cada vez mais frequente encontrar
jovens casais de 30–40 anos que estão
cansados desta cultura da competição.
São obrigados a trabalhar muito a
fazer longas horas de viagem e no fim
sentem-se muito cansados e sentem
que a sua família está em perigo. Estes
jovens casais pedem para vir trabalhar
para a ARCA e aceitam salários muito
mais baixos porque procuram um lugar
onde possam viver humanamente.
Nesta sociedade da competição a
minha esperança é criar lugares de
escuta de amizade e de acolhimento
mútuo. O que conta é criar lugares
onde se vive com humanidade. Mas não
tenho uma solução já pronta. Vamos
caminhando vamos tentando compreender
vamos procurando.

Uma pertença comum

A análise de Généreux toca a de
Zymunt Bauman 2 . Este sociólogo
analisa a evolução das nossas sociedades
que no passado eram
constituídas por grupos fechados por
exemplo religiosos ou nacionais cujo
perigo era abafar a liberdade. A
resposta a esta pressão foi a insistência
no individualismo mas este
individualismo provocou uma erosão da noção de pertença o que gera
angústia. O estímulo do sucesso
provoca o desprezo do outro. A cultura
da competição é de tal forma invasora
e omnipresente nomeadamente nos
media, que consegue extinguir o desejo
de criar laços. Bauman fala duma luta
interior quotidiana contra as
compulsões sociais de sucesso pessoal e
da ambição. É praticamente todas as
manhãs que os indivíduos têm que
escolher de pertencer ainda aos seus
grupos! Perdemos os valores da
pertença uma pertença que eu
chamaria de pertença a uma
umanidade comum. Creio que é
preciso reencontrar a pertença ao seu
grupo para tomar consciência da
pertença a uma globalidade comum.
O perigo do ser humano é fechar-se em
preconceitos. Martin Luther King
interrogava-se porque é que cada um
de nós se põe tão depressa a desprezar
o outro. É evidente que ele tinha
experimentado muitas vezes este
desprezo da parte dos brancos. O
desprezo é como uma espécie de
movimento: se alguém me despreza
eu desprezo-o por meu lado também.
Os Brancos desprezavam os negros e
ao mesmo tempo os negros
desprezavam-se entre si. Para M.L.King
continuamos a desprezar o outro ou
desprezar um grupo enquanto não
conseguirmos acolher aquilo que é
desprezível em nós. A única maneira
de sair disto para cada um de nós é
reconhecer aceitar e mesmo amar
aquilo que é desprezível em nós. A
ARCA nasceu dum mundo de desprezo
do outro. Acolhemos as pessoas que
foram desprezadas porque têm uma
deficiência. As pessoas que vêm para a
ARCA sofrem em primeiro lugar de
rejeição e de dificuldades em
encontrar o seu lugar na vida. Cada
pessoa que veio para aqui sofreu na
pele a rejeição. Estou a pensar numa
rapariga do meu lar. Tem 23 anos e
não tem uma deficiência muito
marcada sofre muito mais dum a
deficiência social: sem escolaridade
nunca conheceu os pais terá sido
batida pela sua ama… E nós aqui
estamos para lutar contra as lacunas da
educação da vida familiar das
competências sociais… Será que
seremos capazes de a ajudar a
aprender uma profissão a casar? Não
sei mas deveremos acompanhar o seu
sofrimento.

A vida como uma passagem

Cada um de nós precisa de provar que
é alguém que é capaz de fazer coisas
de ser competente e reconhecido pelo
que faz… Ser um bom médico um bom
enfermeiro é importante é evidente.
“Entramos pequeninos na vida e morremos
pequeninos”

Mas á outra coisa em mim. Preciso de
me sentir amado não por causa das
min as capacidades mas por causa
daquilo que sou e isso é muito mais
profundo.
Um dos meus amigos que é médico um
dos pioneiros dos cuidados paliativos
nos Estados Unidos e no Canadá teve
que tratar dum grande gansgster que
tin a um cancro. Vi fotografias dele
quando estava de boa saúde e outras
quando estava doente. Aquele omem
muito poderoso era um dos c efes da
máfia nos Estados Unidos e tornou-se
progressivamente tão frágil como um
bebé pequeno precisando de se sentir
amado tocado…
Entramos pequeninos na vida e
morremos pequeninos quer queiramos
quer não… A minha irmã que tem 84
anos na sequência duma baixa de
tensão caiu e bateu com a cabeça. Foi
hospitalizada e disseram-lhe que não
podia morar sozinha em sua casa.
Médica e intelectualmente muito forte
trabalhou mais de 25 anos nos cuidados
paliativos. Hoje vive na casa das
Irmãzin as dos Pobres de Londres.
Toma todas as suas refeições com
pessoas que têm a doença de
Alzheimer. Médica dos cuidados
paliativos passou agora para o outro
lado. É uma passagem bem rude. Eu
próprio tenho agora 79 anos e no meu
lar as pessoas por quem era
responsável tornaram-se responsáveis
por mim. Dizem-me – Jean estás
cansado não vais lavar a loiça… A vida
é uma passagem da vulnerabilidade à
vulnerabilidade. O sentido profundo do
ser humano é o acolhimento da sua
vulnerabilidade.
A maior parte dos jovens que passam
pela ARCA ficam transformados pela
sua relação com as pessoas com uma
deficiência. Descobrem neles novas
energias no contacto com as pessoas
mais frágeis principalmente a energia
da compaixão e da bondade. Não
somos nós que vamos transformar as
pessoas que têm uma deficiência ou
que são excluídos são eles que vão
revelar-nos. Podem fazer bem a muitas
pessoas que não parecem estar a
sofrer mas que vivem escondidos atrás
de paredes grossas. As pessoas
vulneráveis têm algo a ensinar-nos
sobre o ser humano.

Da competição à relação

Estamos numa sociedade onde humano
quer dizer eficácia rapidez
capacidade de realização… O sentido
do humano está a perder-se. É o drama
de muitas pessoas idosas que entram
em depressão porque ignoram o
sentido profundo do ser humano que é
o acolhimento da vulnerabilidade. Uma
rapariga de Fé e Luz 4 confidenciou-me
um dia: “Comecei a frequentar pessoas
que tinham uma deficiência e a minha
visão do mundo mudou”. Para mim
toda a questão humana está nesta
transformação.
Conheci em tempo um homem de
negócios muito bem sucedido cujo filho
era psicótico. Foi a única vez na sua
vida onde ele teve que admitir que não
podia controlar a situação e que
precisava de ajuda. Descobriu outras
famílias que tinham filhos psicóticos e
isso levou-o a uma conversão uma
transformação.

O que é que provoca esta
transformação? O que é que leva um
grande patrão a acolher a sua
vulnerabilidade? Porque é que há
assistentes que vêm viver para a ARCA
com pessoas com deficiência
recebendo salários tão baixos? E isto
numa cultura que nos pede para
sermos fortes capazes e competitivos?

O que é que vai ajudar uma pessoa a
deixar de estar na cultura da
competição para entrar na cultura da
relação e do acolhimento do outro?
Esta é para mim a grande questão…
Acolher-me a mim próprio como eu
sou não é só reconhecer a minha
vulnerabilidade é também descobrir
que posso dar vida aos outros. O mais
importante no ser humano é talvez
poder dar alegria aos outros. É a
fecundidade. O drama da nossa
sociedade é que as pessoas não têm
que ser fecundas mas sim produtivas e
eficazes.

Lugares de comunhão

A única coisa que conta é a comunhão:
quando eu me torno vulnerável em
relação a ti e tu em relação a mim;
quando eu deixo de ter poder sobre ti
e tu sobre mim mas damos vida um ao
outro.
Como criar situações onde eu aceito
ser quem sou? Onde não tenho que
fingir que sei mais ou fazer de conta?
Como ser feliz junto com outro? Eu
como sou vocês como são cada um
com a sua idade e fragilidades…

Como celebrar a vida? Uma das coisas
mais importantes na ARCA é a nossa
maneira de celebrar de nos sentirmos
felizes uns com os outros brincar
dançar… Aquilo que impressiona mais
as pessoas que nos visitam na ARCA é
que é um lugar de celebração. È
preciso criar lugares de celebração
onde as pessoas sentem que têm
direito a ser elas próprias.

1 Jacques Généreux La Dissociété Ed. SEUIL 2006. Nota da Tradutora.
2 Zymunt Bauman Liquid Love On t e Frailty of Human Love Cambridge Polity 2003 NT

Tradução de: Cahiers de la Reconciliation nº 1 – 2008

Este texto foi transcrito duma
intervenção numa sessão de formação da MIR
5 em Trosly em Fevereiro de 2007